quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Texto


Ninguém cria um futuro, mas um passado, porque não há nenhum futuro para criar: a cada acção, por todas as omissões, não caminhamos para alguma, apenas criamos passado.
            E nunca ninguém nos ensina isto. Porque é fácil sermos irresponsáveis por um futuro que poderemos já nem ter pessoalmente, por um Futuro que não podemos construir sozinhos; mas sempre seremos responsáveis pelo nosso passado (ao menos diante do espelho)e a História não existe – o que existe são as nossas imutáveis histórias juntas, alinhando hipotéticas sínteses colectivas, onde, quem se interesse, colhe determinados factos, determinantes horas, indeterminados nomes, para ensinar às crianças e estabelecer as bases de qualquer poder dominante, actual em seu tempo.
            Criar um futuro, não é sequer uma Utopia, é uma falácia com que nos queremos (ou nos querem) convencer que é possível mudar todas as coisas imutáveis que fazemos: a ilusão das religiões e dos poderes para uso de massas, enleadas elas mesmas nessa teia impossível de iludir: “eu” não tenho um futuro que não seja a morte, e a morte não se constrói, quando muito acerta-se com ela o nosso relógio particular; esta sociedade não tem futuro, autofágica e decadente, acabará mais rapidamente que o Reich dos Mil Anos de Hitler, ou a Heróica Roma, ou o Eterno Egipto dos Faraós Divinos; este mundo não tem futuro, um dia apaga-se como um vela ou uma bomba e nada poderemos fazer quanto a isso, Da Vinci ou Chopin, Cristo ou Marx, acabarão no mesmo lugar de todos os outros homens e mulheres, apagados em memórias de poeira, nem já grandes pensamentos, nem já pensamentos. Nem já sonhos.
            Mas entretanto, teremos esse Passado para construir e com que nos confrontamos: construído segundo a segundo, para que não adiantam desculpas ou protestos de boas intenções, mas os actos e os gestos; onde não há lugar para esperanças adiadas mas para a simples prática quotidiana. No passado não há lugar para bombas nucleares “que nunca serão usadas”: Hiroshima e Nagasaki são crimes contra a humanidade de um país que se chamou Estados Unidos da América; os “descobrimentos” uma empresa comercial com marinheiros arrebanhados à força, as colonizações explorações esclavagistas; as guerras crimes colectivos para defesa ou expansão de interesses privados: a “História” dos vencedores e vencidos exactamente igual, as mesmas bandeiras, os mesmos heróis, os mesmos altruísmos, os mesmos criminosos, os mesmos deuses protectores – um espelho, afinal, não reflecte senão a imagem projectada; os mesmos realmente derrotados. A mesma Humanidade.
            E só quando nesse passado que tivermos construído não haja já nem fome nem medo, nem raças de deus e animais falantes de duas patas, cães abandonados e árvores mortas, chefes iluminados e criminosos por direito divino, quando… só então poderemos dizer que estávamos (talvez) quase a construir uma Civilização.

            Por acaso, vivemos um hiato em que não construímos nem Passado, nem história nem nada. Um hiato de anões em bicos de pés, com o ruído do bruábá gritado por milhares de medíocres, durando os segundos de um noticiário áudio, as horas duma página de jornal antes de ser deitada para o lixo. É o tempo da realidade virtual, improvável, isolante, imbecilizante: não olhes em volta – nada existe. O hiper-consumismo materialista afunda-se no idealismo absoluto mais primário.
Eu não existo, tu não existes, eles não existem. O nada povoado de pseudo-realidades digitalizadas.
Pseudo-possuidores: de bens, de deuses, de verdades, de ciências de doenças. Nunca o policiamento foi mais fácil, videolizados, informaticamente articulados, basta reprogramar o pensamento no momento certo. Não temos gestos. Votamos segundo sondagens viciadas, não escolhendo quem queremos ou o que cremos, mas em quem nos propõem. Não temos sexo por causa do “SIDA”. Não mudamos nada porque vivemos em “democracia”. Não fugimos porque o mundo é uma aldeia tentacularizada. Não nos revoltamos já, porque a Revolta é apenas um produto de consumo.

Resta apenas o silêncio.

Apenas o silêncio é criativo. Apenas no silêncio, alguém, em algum sítio, cria (talvez) um passado de dignidade. Porque, se não caminhamos para o futuro e apenas vimos do passado, que desculpas temos para todos os erros e traições omitidos? Quem somos, senão nós mesmos? Para onde vamos, se não caminhamos para nenhum desse Futuro-esperança a que um dia chegaríamos, vivos ou mortos, cantando hossanas? Que nos resta para lá da responsabilidade de todos os nossos gestos, e que gestos sejam já?

Alguém terá um dia Passado?

Hoje, aqui, o silêncio.

Victor Silva Barros

Julho de 1996

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