Ninguém cria um futuro,
mas um passado, porque não há nenhum futuro para criar: a cada acção, por todas
as omissões, não caminhamos para alguma, apenas criamos passado.
E
nunca ninguém nos ensina isto. Porque é fácil sermos irresponsáveis por um
futuro que poderemos já nem ter pessoalmente, por um Futuro que não podemos
construir sozinhos; mas sempre seremos responsáveis pelo nosso passado (ao
menos diante do espelho)e a História não existe – o que existe são as nossas
imutáveis histórias juntas, alinhando hipotéticas sínteses colectivas, onde,
quem se interesse, colhe determinados factos, determinantes horas,
indeterminados nomes, para ensinar às crianças e estabelecer as bases de
qualquer poder dominante, actual em seu tempo.
Criar
um futuro, não é sequer uma Utopia, é uma falácia com que nos queremos (ou nos
querem) convencer que é possível mudar todas as coisas imutáveis que fazemos: a
ilusão das religiões e dos poderes para uso de massas, enleadas elas mesmas
nessa teia impossível de iludir: “eu” não tenho um futuro que não seja a morte,
e a morte não se constrói, quando muito acerta-se com ela o nosso relógio
particular; esta sociedade não tem futuro, autofágica e decadente, acabará mais
rapidamente que o Reich dos Mil Anos de Hitler, ou a Heróica Roma, ou o Eterno
Egipto dos Faraós Divinos; este mundo não tem futuro, um dia apaga-se como um
vela ou uma bomba e nada poderemos fazer quanto a isso, Da Vinci ou Chopin,
Cristo ou Marx, acabarão no mesmo lugar de todos os outros homens e mulheres,
apagados em memórias de poeira, nem já grandes pensamentos, nem já pensamentos.
Nem já sonhos.
Mas
entretanto, teremos esse Passado para construir e com que nos confrontamos:
construído segundo a segundo, para que não adiantam desculpas ou protestos de
boas intenções, mas os actos e os gestos; onde não há lugar para esperanças
adiadas mas para a simples prática quotidiana. No passado não há lugar para
bombas nucleares “que nunca serão usadas”: Hiroshima e Nagasaki são crimes
contra a humanidade de um país que se chamou Estados Unidos da América; os
“descobrimentos” uma empresa comercial com marinheiros arrebanhados à força, as
colonizações explorações esclavagistas; as guerras crimes colectivos para
defesa ou expansão de interesses privados: a “História” dos vencedores e
vencidos exactamente igual, as mesmas bandeiras, os mesmos heróis, os mesmos
altruísmos, os mesmos criminosos, os mesmos deuses protectores – um espelho,
afinal, não reflecte senão a imagem projectada; os mesmos realmente derrotados.
A mesma Humanidade.
E
só quando nesse passado que tivermos construído não haja já nem fome nem medo,
nem raças de deus e animais falantes de duas patas, cães abandonados e árvores
mortas, chefes iluminados e criminosos por direito divino, quando… só então
poderemos dizer que estávamos (talvez) quase a construir uma Civilização.
Por
acaso, vivemos um hiato em que não construímos nem Passado, nem história nem
nada. Um hiato de anões em bicos de pés, com o ruído do bruábá gritado por
milhares de medíocres, durando os segundos de um noticiário áudio, as horas
duma página de jornal antes de ser deitada para o lixo. É o tempo da realidade
virtual, improvável, isolante, imbecilizante: não olhes em volta – nada existe.
O hiper-consumismo materialista afunda-se no idealismo absoluto mais primário.
Eu não existo, tu não
existes, eles não existem. O nada povoado de pseudo-realidades digitalizadas.
Pseudo-possuidores: de
bens, de deuses, de verdades, de ciências de doenças. Nunca o policiamento foi
mais fácil, videolizados, informaticamente articulados, basta reprogramar o
pensamento no momento certo. Não temos gestos. Votamos segundo sondagens
viciadas, não escolhendo quem queremos ou o que cremos, mas em quem nos
propõem. Não temos sexo por causa do “SIDA”. Não mudamos nada porque vivemos em
“democracia”. Não fugimos porque o mundo é uma aldeia tentacularizada. Não nos
revoltamos já, porque a Revolta é apenas um produto de consumo.
Resta apenas o
silêncio.
Apenas o silêncio é
criativo. Apenas no silêncio, alguém, em algum sítio, cria (talvez) um passado
de dignidade. Porque, se não caminhamos para o futuro e apenas vimos do
passado, que desculpas temos para todos os erros e traições omitidos? Quem
somos, senão nós mesmos? Para onde vamos, se não caminhamos para nenhum desse
Futuro-esperança a que um dia chegaríamos, vivos ou mortos, cantando hossanas?
Que nos resta para lá da responsabilidade de todos os nossos gestos, e que
gestos sejam já?
Alguém terá um dia
Passado?
Hoje, aqui, o silêncio.
Victor Silva
Barros
Julho de 1996
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