sexta-feira, 21 de outubro de 2016

“Pequenos Nadas” - Texto por Carlos da Torre


“Pequenos Nadas”

Houve um tempo em que o já desaparecido Café Américo, na Praça da República da cidade de Viana do Castelo, era um viveiro de sonhos. No final dos anos setenta vivia-se a torrente política e criativa da liberdade e o convívio diário entre pessoas de todas as idades, de todos os ofícios e de todas as convicções, dava àquele café uma vitalidade e um valor difícil de imaginar nas nossas vidas por quem não tenha essa memória vivida ali numa altura tão especial. Foi lá que conheci um pintor de quem me tornei muito amigo e fruidor privilegiado do seu trabalho ao longo dos anos. Victor jovem, mas já com o lastro do activismo na oposição à ditadura em Viana do Castelo e das lutas nas comissões de moradores dos bairros sociais do Porto. Ali trabalhou como jornalista, nos anos que se seguiram ao fim da ditadura, nos jornais “República” e “Página Um”. Mas era como pintor que todos o víamos já nessa altura.

O Victor escolhera, desde muito cedo, a pintura como ganha pão. Uma escolha ousada. Sem uma academia artística que lhe desse o conforto inicial. Já com um mundo próprio estruturado em fortes referências filosóficas, políticas e culturais. A fervilhar de ideias que navegavam em palavras. Em todas as dimensões, da conversa sem fim à escrita com talento. Muitos sonhos. Muita ambição de perceber e de mudar o mundo. E, a ligar tudo isto, uma vontade obsessiva de plasmar estas realidades e sonhos em imagens pintadas.

Julgo poder afirmar que encontrou rapidamente um entendimento muito seu do surrealismo, no caminho que foi fazendo. Assumiu uma espécie de gramática daliniana, mas com um discurso nitidamente pessoal. Muito seu. Muito verdadeiro, nesta espécie paradoxal de mentira de que toda a arte se alimenta.

Fez-se Pintor. Também no sentido mais simples, técnico e rigoroso do termo. No ofício de pintar. No saber. No saber fazer. No domínio dos comportamentos dos materiais. Desenvolveu uma  maturidade oficinal invulgar. Atrevo-me a dizer: muito rara e preciosa. É curioso, ou talvez não, esta solidez ser tão evidente em quem fez o caminho caminhando. Sem uma aprendizagem institucionalmente acreditada, mas com uma extraordinária exigência sobre si próprio em relação ao trabalho artístico.

Nas décadas de oitenta e noventa a pintura do Victor Silva Barros adquiriu uma complexidade narrativa muito acentuada. O jogo simbólico, que estrutura a maior parte dos quadros dessas décadas, é intrincado e às vezes quase parece excessivo na multiplicidade de referências presentes em cada tela. Progressivamente, no decorrer dos últimos anos, sente-se outra atitude. Uma valorização muito assumida de “pequenos nadas”. Sim... A lembrar a canção do Sérgio. Adivinham-se nestas pinturas momentos de memória marcante partilhados connosco para nos apropriarmos deles, provavelmente subvertendo-os. Um olhar que se funde na paisagem. Um rosto. Um objecto artístico, recorrentemente esculturas da Irene, a companheira que lhe terá marcado o corpo e alma para sempre, na sua visão mais simples, trazido para dentro do quadro com toda a respiração do mundo. O avesso de uma tela e pouco mais. Pequenas provocações ao nosso sossego, aqui e ali. E não... não me parece uma desistência absoluta de jogar com a complexidade no conjunto da sua arte de agora. O que sinto mesmo é que o Victor quer convidar-nos a um olhar sereno sobre aquilo em particular, só aquilo, em cada momento que cada tela naturalmente proporciona. E é bem possível que, se olharmos bem, encontremos nesta aparente simplicidade a profundidade do afeto e da beleza, as pequenas fixações que são “o caminho das pedras” que nos permite sentir a substância emocional com que a sua arte nos toca.

Carlos da Torre

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